The graphic artist Alceu Penna in the magazine O Cruzeiro: appropriation and reinterpretation of European fashion and the representation of woman (1940-1950)
Claudia Schemes, Denise Castilhos de Araujo
Resumo
Este artigo procura realizar algumas reflexões acerca do trabalho do artista gráfico Alceu Penna e sua colaboração na revista O Cruzeiro, nas sessões Garotas do Alceu e Moda, nos anos 1940 e 1950. Buscou-se observar de que forma o artista ressignificou a moda produzida na Europa, através de seus desenhos, bem como verificar como a mulher brasileira foi representada no período pelas produções de Penna. Podem-se tomar as produções do artista como objetos de análise, pois são representativas dos períodos históricos nos quais foram elaborados, uma vez que se tornam formas simbólicas, considerando-se como referencial teórico-metodológico a Hermenêutica da Profundidade, de J.B. Thompson. Palavras-chave Alceu Penna; Revista O Cruzeiro; Mulher; Moda.
Abstract
This article tries to make some reflections about the work of graphic artist Alceu Penna and his collaboration in the magazine O Cruzeiro, in sessions of Alceu Penna and Fashion in the years 1940 and 1950. We attempted to observe how the artist re-signified the fashion produced in Europe, through his drawings, as well as verify the Brazilian woman was represented during the productions of Penna. It´s possible to take the productions of the artist as objects of analysis because they are representative of historical periods in which they were made since become symbolic forms, given as a theoretical and methodological hermeneutics of depth, JB Thompson. Keywords Alceu Penna; O Cruzeiro Magazine; Woman; Fashion.
1. Introdução
Alceu de Paula Penna (1915-1980) nasceu em Curvelo, pequena cidade em Minas Gerais, e desde criança demonstrou talento para o desenho ingressando na Escola de Arquitetura no Rio de Janeiro e mais tarde no curso de Belas Artes, que era sua verdadeira vocação. Iniciou seu trabalho de ilustrador no suplemento infantil de O Jornal, de Assis Chateaubriand, em 1932 e logo em seguida se tornou colaborador da revista O Cruzeiro (1928-1983), semanário de grande circulação do mesmo proprietário e um dos mais importantes do país. Esta revista ilustrada possuía uma tiragem de 50 mil exemplares e foi a primeira a circular nacionalmente. Trabalhou, também, como ilustrador e desenhista de histórias em quadrinhos de O Globo Juvenil e na revista A Cigarra. Nesse mesmo período e nos anos seguintes Alceu trabalhou no Cassino da Urca, onde ilustrou cartazes, cenários para shows, figurinos, decorações e fantasias para bailes de carnaval. Passou a participar de diversos concursos de fantasia e ganhou vários prêmios, além de produzir alguns trabalhos para publicidade. No ano de 1938, quando já havia abandonado a faculdade de Belas Artes, criou para a revista O Cruzeiro a coluna Garotas do Alceu, inspiradas nas pin-ups americanas. Essas personagens eram a “expressão da vida moderna” (NETTO, 1998, p.125) e, segundo Penna (2010) o traço que as caracterizava estava no limite entre o sensual e o lúdico. Com essas personagens, segundo Gontijo (1987, p.74), “o artista marcou época com a elegância e atualidade de seu traço, influenciou todos os demais desenhistas de moda que o seguiram e ditou um padrão estético e de comportamento para as jovens de sua época”.
2. Metodologia de análise – Hermenêutica da Profundidade
A fim de verificarmos a relação entre moda, representação da mulher e a produção gráfica de Pena, será realizada a análise de algumas imagens selecionadas da produção do artista, publicadas na Revista O Cruzeiro, a qual se dará através do uso da Hermenêutica de Profundidade de Thompson1 (2002), uma vez que os textos a serem discutidos podem ser caracterizados como fenômenos culturais, que, para este teórico, constituem-se em ações, objetos e expressões significativas, as quais o autor passa a nomear por “formas simbólicas”.
Para Thompson: Enquanto formas simbólicas, os fenômenos culturais são significativos assim para os atores como para os analistas. São fenômenos rotineiramente interpretados pelos atores no curso de suas vidas diárias e que requerem a interpretação pelos analistas que buscam compreender as características significantes da vida social (THOMPSON, 2002, p.181).
Assim, diante dessa consideração, serão utilizadas as três etapas sugeridas por este autor, ou seja, inicialmente, a análise sócio-histórica, a seguir uma 1O termo Hermenêutica de Profundidade será, eventualmente, substituído por HP nesta pesquisa. 59Cultura Visual: Salvador, N0 15, Maio/2011 análise formal ou discursiva e, finalmente, a interpretação/reinterpretação do texto observado. Para o autor, há a necessidade de uma análise que explore as várias facetas de uma mesma produção simbólica, pois não é possível fazer-se a análise de um aspecto somente, porque o objeto trará consigo elementos pertencentes ao momento de sua produção, os quais criam significação, além da possibilidade do próprio leitor estabelecer a sua, a partir dos elementos disponibilizados pelo autor da “forma simbólica”. A primeira fase sugerida pelo autor é a análise sócio-histórica, porque, segundo Thompson (2002), as formas simbólicas, como os desenhos criados por Penna, são produzidas, transmitidas e recebidas em condições sociais e históricas específicas, ou seja, as produções refletem as situações espaço-temporais, seus campos de interação, sua ideologia, para legitimação da análise. Esse processo passa, em um primeiro momento, pela análise das situações espaço-temporais em que as obras são produzidas e recebidas. Segundo Thompson (2002), a HP reforça o fato de que os indivíduos estão vinculados em um mundo social, em tradições históricas e que são parte da história, tanto sua racionalidade, quanto sua ideologia. Suas construções estão baseadas em construções pré-existentes, ou seja, ao que veio antes, até mesmo a fim de reconhecer o que é novo, em oposição ao já visto. E, para este autor, é a análise que deve recair sobre este importante aspecto, conferindo legitimidade à própria História. O autor menciona, também, a necessidade de serem observados os campos de interação, que são espaços de posições e conjuntos de trajetórias, que determinam as relações entre pessoas e algumas das oportunidades acessíveis a elas, consideradas por Thompson como capital, regras, convenções, esquemas flexíveis, que é o conhecimento. Outro nível da análise refere-se às institui- ções sociais, que são conjuntos que demonstram certa estabilidade de regras e recursos, conjuntamente com as relações sociais estabelecidas por essas instituições e, assim, criam a possibilidade de observar a estrutura social, determinando as características – assimetrias, diferenças e divisões.
Outro aspecto relevante a ser analisado é o formal ou discursivo, no qual o pesquisador pode levar em consideração uma análise que perpasse pelos campos da conversação, da sintaxe, dos elementos narrativos e argumentativos. A observação dos aspectos mencionados “[…] pode ajudar a realçar algumas das maneiras como o significado é construído dentro das formas quotidianas do discurso” (THOMPSON, 2002, p.373).
Finalmente, o último nível de análise apresentado por Thompson é o da interpretação/reinterpretação, que sugere a possibilidade, a partir da observação dos resultados das duas fases anteriores, “um movimento novo do pensamento”, o desvelamento de novos significados da produção simbólica. Segundo o autor da HP: “Os métodos podem ajudar o analista a ver a forma simbólica 60 de uma maneira nova, em relação aos contextos de sua produção e recepção à luz dos padrões e efeitos que a constituem” (THOMPSON, 2002, p. 375). Segundo o próprio autor, a interpretação não se esgota em si mesma, porque ela transcende para aquilo que ele chama como reinterpretação, uma vez que o objeto já foi interpretado em um momento anterior, até mesmo pelo próprio produtor. Thompson menciona ainda no seu método de análise a possibilidade da verificação de relações de dominação, dentro do contexto de produção das formas simbólicas, especificando que essas relações baseiam-se principalmente em divisões de classe, gênero, etnia e estado-nação, fazendo parte das diferenças existentes nas instituições sociais e nos campos de interação. O autor sugere ainda que essas relações de dominação possam ser mantidas pelas formas simbólicas, em situações específicas (THOMPSON, 2002).
3. Análise sócio-histórica e formal-discursiva
Para a elaboração deste artigo foram selecionados alguns textos de Alceu Penna, retirados da Revista O Cruzeiro, das décadas de 1940 e 1950, a fim de que se verifique o papel exercido pelo artista na ressignificação da moda produzida na Europa da década de 1950, bem como a representação da mulher dessa época pelo artista. Para tanto, buscou-se material em duas sessões da Revista O Cruzeiro: Moda e Garotas do Alceu.
A seção denominada As Garotas do Alceu difundia um novo comportamento para a mulher, não só na vida privada, mas também na pública. Elas foram inspiradas na mulher carioca, urbana e da classe média, grupo em ascensão que estava com suas possibilidades de consumo aumentadas. Além disso, nos anos 1950 os jovens assumiram um novo comportamento, com uma vida social mais intensa. Para Penna (2007), “[…] é bastante perceptível nos trajes das “Garotas”, que assim como as cariocas, identificaram-se com o estilo casual wear contribuindo para a adaptação da estética e de comportamento das leitoras […]”.
Essas personagens vinham ao encontro de uma sociedade que estava se industrializando e urbanizando cada vez mais, que estava assumindo uma identidade moderna.
As Garotas representavam o contraponto da mulher bem comportada da época, eram mais descontraídas, alegres, ousadas e independentes, embora não representassem uma ruptura total com a ideia da mulher-mãe e esposa.
Podemos perceber esse conflito entre a mulher-moderna e a mulher mãe-esposa, em vários momentos, como no texto intitulado “Garota, você quer me levar no quadro?” de A. Ladino que fazia parceria com Alceu Penna na seção “As Garotas do Alceu”:
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Entre as distrações mais inocentes das garotas a bicicleta tem lugar de relevo. Montadas numa bicicleta, as garotas formam um quadro sempre pitoresco. Principalmente quando encontram um gaiato para se encarapitar no quadro de sua máquina. O que vale é que nunca falta o freio. Na bicicleta, bem entendido […] (Revista O Cruzeiro, 17.04.1948, p.23)
A garota aí representada era liberal o bastante para se “encarapitar no quadro” da bicicleta de algum rapaz e a alusão à “falta de freio“ demonstra a malícia através da linguagem com duplo sentido. Em outro momento, entretanto, o modelo mãe de família é expresso explicitamente, como no artigo “Oração das garotas a Santo Antônio”:
Meu Santo Antônio querido, Aos seus pés venho rezar Com fervor mais decidido, Com devoção exemplar, Mas vou fazer-lhe um pedido que você vai desculpar, Eu preciso de um marido Eu preciso ma casar! […] (Revista O Cruzeiro,20/06/1948, p.28)
Um fato importante na carreira de Alceu Penna foi a sua tentativa de fazer carreira nos Estados Unidos, anos depois de criadas as Garotas. Naquele país, o desenhista assumiu uma nova função: a de consultor informal de moda de Carmen Miranda que fazia sucesso em terras americanas. Mesmo sua estada durando apenas dois anos, Alceu voltou ao Brasil como um grande difusor de moda, costumes e hábitos norte-americanos entre a juventude brasileira.
Sem abandonar a influência francesa da moda até o começo da guerra, o ilustrador não apenas dita formas de vestir e de comportamento como populariza um biótipo específico de beleza: o da mulher de cintura fina, quadris reduzidos, pescoço longo e afinado, nariz afilado e olhos puxados. […] Para ele, suas personagens materializam o sonho da mulher ideal: bonitas, atrevidas, inteligentes […] Ou seja,“As Garotas” significam a expressão da vida moderna. Por tudo isso, quantas mulheres não se vestem, gesticulam ou “pensam” como as garotas do Alceu? (JUNIOR, 2004, p.81,82).
Alceu Penna, entretanto, não foi apenas ilustrador, mas, também, criador de moda. Como repórter de moda e comportamento, além de grande apreciador do vestuário feminino, ele criou muitos modelos que eram copiados em larga escala pela população leitora das revistas em que trabalhava. É importante salientar que os desenhos d’As Garotas sempre vinham acompanhados de um pequeno texto.
Portanto, a partir dos anos 1940 Alceu se tornou uma referência na moda nacional, principalmente através das fantasias de carnaval criadas por ele e desenhos de roupas de gala, festa ou casamento. As famílias ricas do Rio de Janeiro não prescindiam de seus modelos para as festas mais luxuosas, modelos esses que não eram cobrados. 62
Alceu não era apenas um divulgador da moda, mas um pesquisador que buscava informações e detalhava os tecidos, as cores e as tendências para cada estação. Segundo Gonçalo Junior, nesse ambiente de glamour, o nome de Alceu circula como uma grife e seu estilo de desenho se dissemina formando quase que uma escola.
Com a Segunda Guerra Mundial e a ocupação da França as informações relacionadas à moda deixam de chegar ao Brasil, o que passa a ser um problema para a revista O Cruzeiro, que tinha na moda francesa suas referências. Alceu, então, é convidado pelo editor da revista e assumir as páginas de moda buscando referências principalmente nos Estados Unidos que ainda não estavam na guerra.
A partir de 1945, Alceu torna-se parceiro, durante sete anos, da S.A. Moinho Santista Indústrias Gerais, indústria de tecidos que elaborando folhinhas para serem distribuídas pelo país, além de lhe ter sido confiada toda a produção da revista Tricô e Crochê, onde ele escolhe as roupas que serão mostradas pela revista bem como as modelos e fotógrafos.
Alceu, aos poucos, deixou de lado a inspiração nos modelos norte-americanos e passou a criar modelos próprios mais voltados ao gosto da brasileira, especialmente para bailes de carnaval de clubes de elite e festas juninas.
No final da guerra, Alceu fez sua primeira viagem à Europa, com recursos pró- prios, como correspondente de moda em Paris da revista O Cruzeiro. Lá, ele entrou em contato com o mundo da moda, principalmente através de desfiles, mas chegou à conclusão de que a mulher brasileira tinha um charme único e inigualável, mas, mesmo assim, acreditava que não havia ninguém no Brasil que tinha prestígio suficiente para criar algo diferente do que era feito em Paris, principalmente por seu figurinista preferido: Christian Dior.
Nos anos 50, de volta ao Brasil, Alceu, que já era referência para a moda nacional, se torna um de seus mais importantes especialistas e críticos, escrevendo vários editoriais de moda.
A Figura 1, retirada da sessão de moda da Revista O Cruzeiro, revela a participação do artista Alceu Penna não só na criação das Garotas do Alceu, mas na elaboração de textos e desenhos mostrando modelos com as tendências da moda da época. Esse fato permite afirmar que o artista mantinha estreita relação com a moda, pois caracteriza os modelos ao apresentá-los às leitoras. Além disso, Penna (2010) afirma que “a coluna ilustrada levou milhares de leitoras a copiarem a moda, os gestos, penteados, e até mesmo a maquiagem das ‘garotas’(PENNA, 2010, p.20). Sabe-se, também, que Alceu serviu como consultor de Carmem Miranda, no que diz respeito à elaboração de seus figurinos (PENNA, 2010). 63Cultura Visual: Salvador, N0 15, Maio/2011
Na imagem mencionada são apresentados quatro modelos com roupas distintas, mas tendo em comum o debrun (galão), ou seja, a presença de fitas para arrematarem decotes, barras, mangas, bem como para elaborar certos desenhos. São trajes compostos por casacos, e boleros, saias ou vestidos; as modelos ainda usam chapéus e luvas. Ao lado de cada fotografia vê-se a presença de textos que explicam os visuais, bem como nomeiam a estilista – Nina Ricci. Os parágrafos mencionam, também, as cores das roupas, e, ao final, há juízos de valor: “bonito modelo”, “muito elegante”, “bonitos efeitos”.
Percebe-se, então, que Penna é autorizado pela revista para opinar a respeito dos modelos expostos na sessão, ele coloca-se como um perito, o qual traduz e opina a respeito dos modelos expostos, pois revela à leitora o material com que a roupa é feita, para, em seguida, dizer a essa leitora seu julgamento a respeito do que vê. Tal julgamento, talvez se revele como um aval para as leitoras usarem as roupas apresentadas, pois tinham em Penna a confiança no seu conhecimento e proximidade com a moda.
Para Penna, A coluna, mesmo ostentando as linhas da moda dos EUA, também privilegiava o bom gosto francês. Essa moda, diferentemente da norte-americana, seguiu linhas distintas de elegância. A alternância de influências será uma característica constante nos anos de vigência da coluna (PENNA, 2010, p. 76).
Com suas apreciações, o artista reforça, para suas leitoras, a classe e o requinte que os modelos franceses têm, persuadindo-as do fato. Observa-se, então, na imagem selecionada, uma mulher recatada, esguia, a qual tem grande parte de seu corpo coberto, pois usa casaco, saia, luvas e chapéu; ou seja, estão à mostra somente as pernas, mas dos joelhos para baixo. Esse figurino pode, conotativamente, significar o decoro que se esperava que as mulheres da época mantivessem.
Ainda vê-se na época uma mulher muito voltada para os afazeres do lar, para a família, podendo-se afirmar que a roupa representaria esse aspecto, mostrando a necessidade de o corpo feminino não ser exposto de forma exagerada, para a época. Por outro lado, a mulher, na década de 1950, passou a apresentar maior participação no mercado de trabalho, principalmente no comércio, em escritórios ou em serviços públicos, como professoras, enfermeiras, funcionárias burocráticas, médicas, assistentes sociais, vendedoras; e, com isso, houve a exigência de nível de escolaridade maior, provocando mudanças no status social dessas mulheres.
Por outro lado, as mulheres continuavam sendo vistas como donas de casa e Figura 1- Debruns da Revista O Cruzeiro. 64 mães, pois se imaginava que indo trabalhar fora de casa, essa mulher deixaria de fazer seus afazeres de maneira que se esperava (BASSANEZI, 2009).
Diante dessa nova realidade (trabalho fora de casa), as revistas femininas passaram a enfatizar a necessidade das mulheres manterem boa aparência, boa reputação e continuar revelando-se femininas (BASSANEZI,2009). As tendências de moda, então, são sugeridas pelas revistas femininas, como ilustrado pela Figura 1.
Outra sessão da revista que tinha a participação de Alceu chamava-se Garotas do Alceu, na qual o artista apresentava seus desenhos, normalmente combinando moda e comportamento, com textos elaborados por outros profissionais, conforme ilustra a Figura 2.
Na Figura 2, vê-se que Penna reafirma a presença dos debruns nas roupas femininas, sugerindo na sessão de moda da revista da mesma edição. Nessa imagem, seu ponto de vista é reforçado, pois seus desenhos revelam a maneira como o artista percebe a moda, especificadamente os debruns, os modelos e os comprimentos das saias.
Ele apresenta seis desenhos, três em cada página da revista. Na página da esquerda, Alceu expõe um modelo de casaco branco até a altura dos joelhos, um conjunto de vestido e bolero e um tailleur (casaco e saia). As cores utilizadas pelo artista são branco, azul e vermelho com preto. Nos três modelos as mulheres usam luvas (revelando-se acessórios para ocasiões formais) e duas delas vestem, além das luvas, chapéus e sapatos de salto alto. Na página da direita, outras três figuras femininas, também vestindo conjuntos de saia e casaco, chapéus e salto alto. Vê-se a feminilidade expressa através de peças de roupa como as saias e os vestidos; apesar de a calça já fazer parte do figurino feminino, ela não é apresentada no editorial.
Os desenhos, então, reiteram o perfil feminino esperado na época, mulheres esguias, com figurino bem cuidado, cabelos curtos e arrumados. Para Bassanezi (2009), a mulher da década de 1950 ainda mantinha-se dentro de uma moral sexual forte, e o seu trabalho era subsidiário ao trabalho masculino, que se mantinha como o “chefe da família”. Além disso, em virtude do final da guerra, mesmo as brasileiras sofreram a influência de campanhas publicitárias estrangeiras incentivando a volta das mulheres ao lar, a fim de cuidar da casa, do marido e dos filhos.
Essas mulheres também deveriam apresentar características que se pensavam intrínsecas a elas, como o instinto materno, a pureza, a resignação e a doçura. (BASSANEZI, 2009). Características que podem ser identificadas nos desenhos de Penna, através das cores (tons pastel: rosa, azul; e do branco), e dos cortes das roupas. Apesar de se aproximarem dos corpos, são modelos que não evidenciam as formas femininas, reiterando, assim, a necessidade de não revelar essa mulher, apenas vesti-la com elegância e decoro. 65Cultura Visual: Salvador, N0 15, Maio/2011
Apesar de serem ilustrações, observa-se a preocupação em dar movimento às mulheres da ilustração, indicando, talvez, o próprio movimento que as mulheres estavam iniciando, saindo de casa e indo para o espaço público. Além disso, as roupas que as mulheres usam condizem com esse movimento, são trajes mais curtos, permitindo livre movimentação por parte das mulheres, ou seja, elas precisavam de roupas que permitissem não só a expressão de determinadas características (doçura, pureza,…), como deveriam estar prontas para as atividades que fazem parte do dia a dia feminino. Segundo Penna (2010),
O corpo e a moda das Garotas do Alceu, dotadas de poder comunicativo, evidenciam, em parte, a realidade vivenciada pelas moças contemporâ- neas à coluna, que viviam sob o comando de uma sociedade patriarcal. Mesmo refletindo o universo das leitoras de O Cruzeiro, a coluna, ao mesmo tempo em que se aproxima dessa realidade, parece dar pistas de certos avanços em direção a uma situação menos conservadora para a mulher (PENNA, 2010, p.72).
A situação referida por Penna pode ser percebida na Figura 3, a qual apresenta mulheres preocupadas com a moda, ou seja, alguém que domina ou gostaria de dominar o código de vestir e, através dele, se apresenta à sociedade.
Na Figura 3 são apresentadas cinco mulheres, todas de vestidos, os quais são de modelos e de cores diferentes. É possível observar que quatro das cinco mulheres usam os sapatos nas cores dos vestidos. É importante observar que nesse desenho as mulheres revelam partes de seus corpos que antes não revelavam: os braços, o colo, as mãos. Isso pode evidenciar a proximidade com as mudanças que viriam ocorrer no final da década seguinte (movimento feminista, por exemplo).
Outro aspecto que merece destaque são as cores utilizadas nos desenhos, são vibrantes, fortes, diferenciando-se dos tons observados anteriormente. O texto que acompanha a figura fala que “[…] a moda é importante, já que as faz tão bonitas e tão felizes, os homens acabam por se render”. Relacionando-se imagem e texto, observa-se que a mulher, nesse momento, deve seduzir o homem, por seus dotes ou pelos vestidos que usa. Ou seja, há o reforço da necessidade da presença masculina na vida das mulheres, talvez, por isso, o revelar de algumas partes do corpo antes não tão expostas.
Na Figura 4 é apresentada a linha “diretório”, ou seja, a cintura alta, a qual, segundo texto que acompanha a imagem, é o novo decreto de Paris. Nos pará- grafos que acompanham as modelos há a descrição dos modelos, dos tecidos e das cores.
Figura 2 – A beleza dos debruns da Revista O Cruzeiro 66
O interessante nesta figura é atentar para as poses e o gestual das modelos, aspectos que reforçam a fragilidade, a delicadeza, a discrição que a mulher deveria expressar nesse período.
Para Bassanezi (2009, p. 612), “Ficava mal à reputação de uma jovem, por exemplo, usar roupas muito sensuais, sair com muitos rapazes diferentes ou ser vista em lugares escuros ou em situação que sugerisse intimidades com um homem”.
As fotos demonstram preocupação com essas mulheres, sendo elas modelos, deveriam ser consideradas o guia para as demais, ou seja, as leitoras. Elas (modelos) expressam ar de ingenuidade, até mesmo de infantilidade, são sorrisos contidos.
Além das expressões faciais contidas, observa-se que todas elas usam luvas, reforçando, mais uma vez, a formalidade, podendo significar o distanciamento que a mulher deveria manifestar.
4. Interpretação/Reinterpretação
Após a observação das imagens apresentadas, pode-se verificar que o artista plástico Alceu Penna demonstrou preocupação em revelar a mulher da época, reiterando os traços femininos desejados e sugeridos pela mídia (revistas femininas).
Por outro lado, ao observar as “Garotas do Alceu”, também é possível identificar elementos que destoam das características sociais desejadas para uma mulher das décadas de 40 e 50. As imagens do artista representam mulheres muito mais descontraídas, preocupadas com futilidades (os textos que acompanham as imagens mostram esse aspecto), as quais se valem da moda para revelarem sua beleza, jovialidade e descontração.
Os desenhos parecem representar uma mulher que viria na década seguinte, muito mais independente, despreocupada com as orientações que a sociedade impingia, revelando seus desejos, gostos, reforçando sua independência.
Pode-se ler as produções de Penna (editoriais de moda e Garotas do Alceu) como reflexos de uma sociedade em transformação, mas que mantinha ainda arraigados uma série de valores morais, os quais parecem ser mais presentes nas fotografias e menos reforçados nos desenhos do artista.
Enquanto a maioria das seções de moda veiculadas nas revistas nacionais nos anos 1940, atinha-se a apresentar as novidades da moda internacional, Alceu Figura 3 – As garotas dão aula de moda, Revista O Cruzeiro. 67Cultura Visual: Salvador, N0 15, Maio/2011 Penna foi além e passou, pouco a pouco, a delinear, através de seu trabalho nessa seção, as primeiras linhas de uma visualidade brasileira na moda e nas aparências. O ilustrador não se lançou imediatamente na elaboração de modelos inéditos e com a “cara do Brasil”, mas foi, pouco a pouco, abrindo algumas brechas para a discussão desse tema.
A partir da análise da vida de Alceu Penna, podemos concluir que este artista gráfico ressignificou a moda brasileira e pode ser considerado um dos construtores de uma incipiente identidade de moda nacional2.
Seu trabalho pode ser considerado um dos referenciais simbólicos que ajudaram a constituir uma identidade de moda no Brasil, pois segundo Crane (2006), para entendermos a construção de uma identidade através do vestu- ário, precisamos compreender como as roupas expressam significado, pois o vestuário é um instrumento de comunicação visual que pode subverter, ou pelo menos intervir num determinado grupo ou na maneira com que esse grupo se vê em relações aos outros. Podemos afirmar, portanto, que a moda no Brasil sempre existiu, mas a moda brasileira, não, ou, como diz Pollak (1992), um “sentido da imagem de si, para si e para outros.”
A moda brasileira, como não tinha uma representação própria, também não era percebida pelos outros. Penna criou essa ideia de pertencimento quando criou personagens que retratavam o estilo de vida brasileira e que tinha como cenário o Rio de Janeiro, cidade símbolo do país. A memória coletiva da sociedade brasileira, principalmente dos anos 1940 e 1950, foi marcada pelas Garotas do Alceu e seu estilo de vida.
Para Ziraldo (2007), Alceu fez há mais de cinquenta anos atrás, o que a televisão faz hoje, o que era um “trabalho quase impossível para um desenhista só, mesmo que, à época, significava para o Brasil o que a TV Globo […] significa nos tempos de agora.”
Nesse sentido, Alceu Penna foi um pioneiro, pois ele não apenas criou moda, como inovou com seus modelos, utilizando ou não elementos da nossa cultura, mas influenciou na atitude da mulher brasileira, procurando entendê-la no seu tempo e no seu espaço.
Foi suficientemente destemido, lançando um manifesto já em 1968 em que criticava a ideia da moda como um conceito desvinculado de uma realidade mais complexa e salientava a fundamental importância da moda se relacionar Figura 4 – Na linha diretório, Revista O Cruzeiro. 2 Segundo Pollak (1992, p.5), o sentimento de identidade, […] é o sentido da imagem de si, para si e para os outros. Isto é, a imagem que uma pessoa adquire ao longo da vida referente a ela própria, a imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, para acreditar na sua própria representação, mas também para ser percebida da maneira como quer ser percebida pelos outros. 68 com a cultura, a arte e as transformações sociais, ou seja, com a sua contemporaneidade.
Alceu Penna acreditava que a identidade da moda brasileira não estava ligada apenas a seus aspectos culturais, exóticos e folclóricos, ou às “coisas do Brasil”, mas via a moda como um movimento dinâmico, ligado à mulher, ao corpo, à atitude, ao comportamento, à sociabilidade. Através de seu trabalho, ele procurou se diferenciar da moda europeia já fortemente solidificada e que servia de referência aos poucos criadores nacionais. O artista, para Bonadio (2010), esboçou uma “visualidade brasileira” e criou um “estilo brasileiro de moda”.
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Sobre as autoras
Claudia Schemes é mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (USP/SP) e doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS). Atua nos cursos de História e Design de Moda e Tecnologia e no grupo de pesquisa Cultura e Memória da Comunidade do Centro Universitário Feevale, em Novo Hamburgo. E.mail: [email protected] Denise Araujo possui Licenciatura Plena em Letras/Português pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (1995), mestrado em Semiótica pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (1997) e doutorado em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica (2003). Atualmente é professora titular do Centro Universitário Feevale, no Mestrado em Processos e Manifestações Culturais e nos cursos de Comunicação Social e Design. É membro da Comissão do Mestrado em Processos Culturais, representando o Linha Memória e Identidade. Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em imagem, narrativas quadrinizadas, cultura e gênero, atuando principalmente nos seguintes temas: comunicação, gênero feminino, mídia, corpo e imagem.
E.mail: [email protected]