Por A. Accioly Netto
Jornalista, Diretor da Revista “O Cruzeiro”, RJ
(Matéria publicada na revista O Cruzeiro- Edição 12/ paginas 100 -105/ 15 de fevereiro de 1980)
Editora: Jeanette Hansen / Desenhos e Foto: Arquivo/OC
As “Garotas” de Alceu acabam de completar quarenta anos de existência. Essa informação para as jeunnes filles en fleur, ou seja, a “geração pão e cocada” dos atuais cronistas mundanos pouco ou nada significa. Mas para suas mães que foram moças na década de 50, a constatação é melancólica, pois aquelas figurinhas bonitas, elegantes e ingênuas, mas sutilmente maliciosas, além da diversão semanal favorita dos leitores da revista O CRUZEIRO, eram modelos de figurinos, penteados e inspiração para trabalhos de artesanato. O mesmo havia acontecido com suas avós em eras anteriores com as “Melindrosas” de J. Carlos. Depois da aposentadoria voluntária de suas “Garotas”, Alceu de Paula Penna recolheu-se a uma vacância otimista, onde passava o tempo ouvindo música, lendo bons autores modernos, e recordando de quando em vez as suas “filhas”.
O repórter, seu amigo de todas as horas, foi entrevistá-lo para comemorar a data, e o fez em ambiente tranqüilo e descontraído. O artigo não chegou a sair com Alceu em vida, porque em 13 de janeiro, pouco depois de completar 65 anos, falecia serenamente, após a comemoração de seu aniversário, realizado no dia primeiro desta década de 80. São suas últimas palavras, de grande artista e incomparável figura humana, que reproduzimos e se ele não mais as lerá, vão servir para recordar sua passagem entre nós, toda ela dedicada às belas artes.
É uma homenagem de o CRUZEIRO ao seu grande colaborador.
A SAGA DAS GAROTAS
Alceu de Paula Penna, filho de fazendeiros, pai Christiano Penna e mãe Mercedes de Paula Penna, natural de Curvelo, pacata cidadezinha situada no centro geográfico de Minas Gerais (onde nasceram ambém o romancista Lúcio Cardoso, o político Adauto Lúcio Cardoso e a figurinista Zuzu Angel), contando dez irmãos e irmãs. Nos idos de 1932 veio para o Rio de Janeiro estudar arquitetura –“Matriculei-me na Escola Nacional de Belas Artes e segui os cursos até a quinta série mas, na verdade, gostava mesmo era de desenhar. Durante cinco anos fiz histórias em quadrinhos na Rio Gráfica Editora, com textos de Nelson Rodrigues ilustrava contos e novelas e produzia capas para a Empresa Gráfica O Cruzeiro, colaborando também para os suplementos feminino e a infantil de O Jornal com Elza Marzulo.”
Um certo dia 5 de abril de 1938 os jornais cariocas publicaram o seguinte anúncio: “As Garotas que têm yumpf. As Garotas que são a expressão da vida moderna. As Garotas endiabradas e irrequietas serão apresentadas todas as semanas em O CRUZEIRO, por Alceu, o mais malicioso e jovem de nossos artistas. As Garotas em duas páginas a cores constituem um dos its de O CRUZEIRO, a revista que acompanha o ritmo da vida moderna”.
Na data seguinte, inseridas numa publicação de enorme prestígio cuja tiragem, na época, era maior que todas as outras revistas somadas, surgiam as “Garotas de Alceu”. Desenhadas com graça e elegância, com legendas de muito bom humor, abordavam os mais variados temas mundanos, cinematográficos, esportivos, políticos, teatrais foram desde logo adotadas como uma espécie de biblia, pelos muitos milhares de leitores e leitoras, durante nada menos de vinte e oito* anos de publicação ininterrupta.
As moças eram suas fãs incondicionais utilizando os desenhos para um sem número de utilidades, principalmente como modelos de vestidos e penteados. Muitas encadernavam as páginas, outras copiavam os desenhos para trabalhos manuais nos colégios e artesanato de couro, madeira, cobre, porcelana e bordados de blusas, vestidos, etc. Suas frases e pensamentos eram repetidos, criando-se modismos populares. Há quem diga que serviram de exemplos para duas gerações de adolescentes. As “Garotas” tiveram quatro legendistas: Accioly Netto (Lyto) Millor Fernandes (Vão Gogo) Edgard de Alencar (Aladino) e Maria Luiza Castelo Branco. Foram também programas de sucesso na Rádio Tupi, protagonizada por Lourdinha Bittencourt, Salomé Cotelli, Solange França e Nilza Magrassi, ensaiadas por Paulo Gracindo, com patrocínio do Jockey Club Brasileiro.
Mas, como dissse Aristóteles, o filósofo, “tudo o que nasce começa a morrer”, e em 1964 desapareceram das páginas de O CRUZEIRO quando a revista estava em plena decadência. Mas por que, exatamente?
-“Saíram de moda, sendo substituídas por outras em carne e osso, menos ingênuas, dançarinas calistênicas de discotecas, com tendências ao nudismo, nas praias e bailes de carnaval, em biquínis microscópicos. Além do mais usavam uma gíria incompatível com a índole das minhas garotas, bem mais cultas e inteligentes.”
Na imprensa mundial o mesmo aconteceu. No princípio do século eram as “Gibson’s Girls” no Saturday Evening Post, frias e discretas, embora belíssimas, depois surgiram as “Petty’s Girls” do Squire, e em seguida as “Vargas’s Girls”, mais medíocres, do Playboy. Daí por diante os desenhos acabaram para dar lugar às máquinas fotográficas, focalizando as “coelhinhas” e “moças de calendário”, que começaram usando o “manto diáfano da fantasia”, segundo a definição de Eça de Queiroz, para atingirem rapidamente o nu frontal, com todas as suas cruas implicações sexuais. E o mesmo está acontecendo com nossas publicações ditas “só para homens”, embora mais comedidas e discretas, sob o olho da censura – de Status a Lui, passando por Ele e Ela, Homem e Playboy- vendidas nas bancas de jornais envoltas em mantos hipócritas de celofane.
*N. do E.: 26 anos exatamente.
DEPOIS DA MEIA NOITE
Mas nem só de “Garotas” viveu Alceu Penna, grande figurinista, que em breve foi convidado a trabalhar com os “reis das noites”
-“Antes de terminar o jogo, por obra e graça do Presidente Dutra, praticamente desenhei os figurinos de todos os shows do Cassino da Urca, dirigidos por Chianca de Garcia, como: C’a cest Paris com Rey Ventura, até Vem, a Bahia te espera, ao mesmo tempo que atendia ao Golden Room, do Copacabana Palace Hotel, onde imperava, gastando milhões, a suntuosidade do barão Von Stukart, como Carrousel, cujos vestidos eram bordados com pedrarias semipreciosas. Atendi também o irrequieto Lanthos, do Cassino Icarai, bem mais modesto em seus espetáculos. Depois que roletas foram recolhidas fiz vários shows com o imaginoso Silveira Sampaio, que encenou na boate Beguin Quem Roubou meu Samba? , No País dos Cadillacs e Brasil de Pedro a Pedro, todos de imenso êxito. Fiz ainda com Chianca de Garcia, Circo, no Teatro Carlos Gomes, para Abelardo Figueiredo, Circus, no Canecão, e para Accioly Netto, Frenesi no Golden Room do Copacabana Palace, modelos executados por Evandro de Castro Lima.”
Nos carnavais, Alceu Penna decorou durante oito anos os Bailes dos Artistas do Hotel Glória. Manteve ainda em O CRUZEIRO duas páginas de modas durante alguns anos, e vários Calendários.
Nos concursos de beleza dos Diários Associados, desenhou numerosas fantasias como a “Cearense” de Emilia Corrêa Lima, que foi Miss Brasil, e a “Baiana” de Martha Rocha, igualmente vitoriosa, e quase Miss Universo em Miami.
-“Por falar em baianas, estando em Nova York para a Feira Internacional renovei todo o guarda-roupa de Carmem Miranda, que então atuava no Broadhust Theatre, com Abott & Costelo e Jean Sablon – primeiro como atração e depois como estrela absoluta do empresário Shubert-inclusive as saias multicoloridas, os turbantes fantásticos e os sapatões de solas grossas. Desenhei também as suas fantasias quando foi para Hollywood com o Bando da Lua. No teatro declamado, forneci modelos de roupas para Isto deve ser proibido, de Cacilda Becker e Walmor Chagas, como também Sleuth de Paulo Gracindo e Gracindo Júnior.”
A FASE INTERNACIONAL
Foi naquela época que a Companhia Rhodia, por intermédio do inventivo e dinâmico Livio Rangan italo-paulista de muito talento e bom gosto, lançou os seus grandes desfiles e shows internacionais de modas, com tanta repercussão e sucesso, todos com modelos exclusivos de Alceu Penna.
Começou com a Coleção Café cujas padronagens eram desenhadas por vários pintores brasileiros de renome com desfiles em Paris (Maison de l’Amerique Latine) e Hamburgo (Hotel Atlantic) vestidos pelos famosos manequins Mila, Lucia Curia e Marucia Carnowska. Outro desfile, o Brazilian Look, esteve em New York, Chicago e Filadélfia, com cerca de quarenta criações originais.
-“Na Rhodia tive uma fase sumamente gratificante, trabalhando com uma equipe numerosa e atendido por fartos recursos financeiros. Depois dos desfiles, a criatividade de Livio Rangan expandiu-se para os shows de modas, com a presença de manequins famosos, que passavam os vestidos, artistas e cantores como apoio. Foram eles, Stravaganza, Brazilian Primitive, Momento 68, Festival do Couro e Rio 400 anos, apresentados com Gal Costa, Raul Cortez, Rita Lee, Eliana Pitman, Gilberto Gil e Caetano Veloso. Nestas temporadas lancei mais de duzentos modelos. Os shows estiveram na Europa, Asia, América do Norte – especificamente, Roma, Paris, Hong Kong Libano – percorrendo depois, quase todas as capitais brasileiras em espetáculos de beneficência. A seguir, com a Ducal outros shows do mesmo gênero foram apresentados contando com Jô Soares, Wanderléa e Eliana Pitman. Foram promotores jornalisticos as revistas O CRUZEIRO e depois Manchete.”
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Embora aposentadas por Alceu, por bons e leais serviços, as “Garotas” continuam como marcas registradas do bom gosto juvenil. Vinicius de Morais, para quem “a beleza é fundamental” (com desculpa das feias…) compôs com Tom Jobim, o capolavoro da Bossa Nova, “Garota de Ipanema”, que finalmente deu nome a uma bela praça carioca. Por tudo isso, e muito mais, também o nome de Alceu de Paula Penna jamais será esquecido, como um dos maiores desenhistas do Brasil, não só na história de nossa arte como na memória daqueles que tiveram o privilégio de conhecê-lo vivo e atuante, principalmente na revista O CRUZEIRO, que o viu nascer com suas criações e onde teve seus momentos de glória.
E a cidade do Rio de Janeiro, assim como fez com a “Garota de Ipanema deverá de ora em diante dar o seu nome a uma de suas vias públicas RUA ALCEU DE PAULA PENNA. E com isso fará um ato de justiça a quem levou a existência glorificando as suas adolescentes em flor.