Alceu Penna segundo Ziraldo

Por Ziraldo Alves Pinto
Escritor, cartunista, ilustrador.

Publicado no Catálogo da Exposição “As Garotas do Alceu” (Palácio das Artes/Belo Horizonte, MG/Julho 1983) 

“De las dos almas en el mundo que habia unido Diós, dos almas que se amaban, esto” éramos um de nós e uma Garota do Alceu.
Nós éramos os namorados das Garotas do Alceu. Nós as tínhamos “under our skins”.
Nós amávamos as Garotas do Alceu.
Durante anos, todas as moças bonitas deste País – dos fins da tarde nas calçadas da Praia de Icaraí, em Niterói, e das filas do Cine Metro, no Rio, aos “footings” das pracinhas do interior – se penteavam, se sentavam, gesticulavam, sorriam e se vestiam como as Garotas do Alceu.
E nos encantavam e nos faziam sonhar. Tanto que, muitos de nós – quase todos os que se casaram naquela época – nos tornamos, um pouco, genros do Alceu.
Nós conversávamos nos bancos das praças, passeávamos pelas calcadas, beijávamos no cinema e dançávamos nas nossas festinhas, ao som da nossa canção. E depois, ganhávamos de presente um caderno com todas as letras das músicas de sucesso, com a nossa canção abrindo a coleção, fosse ela um bolero de Gregório Barrios ou um “fox” de Nat King Cole.


E cada letra vinha enfeitada com a figura de uma das mocinhas cheias de graça que Alceu Penna (1915-1980) publicava, todas as semanas, nas páginas da revista O Cruzeiro.
A equipe de jornalistas, repórteres, ilustradores e humoristas do Cruzeiro criaram vários mitos naqueles tempos – que não vão muito longe. Não tenho, porém, conhecimento, na história de nossa imprensa, de nenhum outro artista que tenha influenciado, com seu trabalho, o comportamento de toda uma geração (talvez só o Pasquim, com seu conjunto de colaboradores, tenha conseguido isto, alguns anos mais tarde).
Sei – por informações e pesquisas – da importância de J. Carlos para sua época, com seus almofadinhas e suas melindrosas; conheci o trabalho de Péricles, com o seu Amigo da Onça, mas estou seguro de que, nem um nem outro, conseguiu com seu desenho agir sobre o modo de ser do brasileiro, determinar maneiras de comportamento, de sentir, de escolher, de vestir.
Em suma: criar uma moda brasileira.
Fazer o que a televisão faz hoje, em escala cósmica, era um trabalho quase impossível para um desenhista só, mesmo numa revista que, à época, significava para o Brasil o que a TV Globo, por exemplo, significa nos tempos de agora. Mesmo porque, a mensagem impressa não tem nem a velocidade nem o impacto da mensagem eletrônica. O que aumenta os méritos da obra de Alceu Penna como ilustrador e figurinista.
Suas meninas de olhos expressivos, de gestos delicados e cheios de graça, de cinturas finas, de longos cabelos e de saias rodadas, cujo tecido era informado com duas ou três pinceladas – a gente sabia se era seda ou algodão – eram tão fortes que, me parece, os leitores conviviam com elas como se convive com um ser vivo: ninguém fica perguntando quem é o pai da criança.
Elas tinham vida própria, e tanta que Alceu desaparecia por trás delas. De resto, Alceu Penna era um homem calmo e retraído, doce e sereno, doméstico, não gostava de aparecer. E, muito cedo, tão logo o sucesso da revista O Cruzeiro começou a se esvanecer, ele foi sendo esquecido.
Uma injustiça que não se pode atribuir a ninguém. Há coisas que acontecem na vida e, com todos os dados ao nosso alcance para explicá-las, corremos o risco de chegar a uma falsa dedução. Simplesmente: aconteceu assim.
Alceu me encantava. Seu trabalho, sua técnica, sua sofisticação, a incrível facilidade com que ele desenhava, me encantavam.
Aqui está a primeira exposição de seu trabalho, depois de sua morte. Acredito que seja a primeira exposição dos trabalhos desde que ele começou (não me lembro de outra – eu disse – ele era retraído e desenhava como quem respira: por pura necessidade vital). Dava-nos sempre a impressão de que o que fazia não era muito importante, nem para ele nem para ninguém.
Puro jeito de ser. Ele, no fundo, sabia que era um grande artista, um dos maiores de toda a História da imprensa brasileira.
Acho urgente que esta sua exposição percorra o Brasil inteiro. Nada disso de querer que sua memória seja reverenciada. Ele iria achar de extremo mau gosto, não é por aí. O que importa é que os primeiros netinhos das Garotas do Alceu conheçam o desenho do moço que ensinou vovó a ser a adolescente mais doce deste século.

 

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